A madrinha

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Tarde de calor, açaí com minha irmã e o único afilhado dela (meu filho). Ele brincava dentro de um carrinho enquanto nós comíamos, até que no exato momento em que minha irmã se aproximou do brinquedo meu bebê tentou sair sozinho dele, dando um passo em falso que o faria cair de cara no chão. A queda para mim, sentada longe, era óbvia e inevitável, mas de repente dois braços surgiram como uma cama elástica e ampararam no ar o pequeno corpo ainda tão descoordenado. Era ela, a madrinha. A única pessoa capaz de, mesmo sem ter filhos, agir com a velocidade de uma mãe. Assim como eu ela previu o desfecho daquele último passo, simplesmente porque ainda que morando em outras cidades ela segue todos seus passos.

Será que ela sabe o quanto a admiro como tia? Do quanto tenho orgulho de ter lhe dado esse título de madrinha? Não é por presentes caros — apesar de a piscina ter sido realmente de botar pra quebrar, nem pelas fotos maravilhosas desde a gestação. Tampouco por declarações públicas de afeto (que nem são o seu perfil), mas porque é ela que tem fluência em Vinicês, sabendo o que significa desde palavras esdrúxulas como iaiá até uma simples vogal como “i” ou “ó”, que podem significar várias coisas dependendo da entonação. A admiro porque é ela quem se informa sobre criação com apego, para saber respeitar meu filho como pessoa, ainda que “mini”. Porque por ele (nós) ela mudou e é capaz de encontrar uma brecha numa terça-feira de trabalho e atravessar cidades para uma visita de poucas horas. Ver meu filho com sua madrinha me enche tanto de encantamento principalmente porque esse amor é meu, mas é tanto amor, mas tanto, que transborda pro Vini.

Nessas horas tudo que eu queria dizer pro meu filho é que “às vezes o mundo pode ser um lugar hostil e difícil. Enquanto eu existir ele será mais leve e colorido, seguramente, mas a vida é realmente uma incógnita, então em caso de minha ausência, seja pelo motivo que for, sendo ausência temporária ou eterna, faça como hoje: Corra um pouco, se distraia com um cachorro ou se divirta no carrinho do supermercado, mas mantenha-se por perto da sua madrinha e lembre-se de às vezes segurar sua mão. Confie na sua Didi de olhos fechados e nunca se esqueça: Ela te ama tanto, tanto, que poderia ser eu. Com ela você sempre estará a salvo, porque ela segue seus passos”.

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Procura-se relacionamento divertido

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Procura-se um relacionamento divertido. Um amor leve, porque de sérias já bastam as responsabilidades e de pesados já bastam os problemas. Alguém que abomine a frase “bonzinho só se lasca”, por entender que quando tudo é pedra é preciso saber ser flor. Alguém que não queira construir uma família de bem, mas sim do bem — e que por família entenda união, amor e cuidado, sem achar que isso está relacionado a contratos assinados no cartório, podendo ter duração de semanas ou décadas e incluir ou não filhos, cachorro e papagaio. Não precisa entender de vinhos nem de jazz, mas deve compreender um olhar decepcionado diante de uma atitude ruim. E que, percebendo esse olhar, não sinta necessidade de se justificar ou criar bons argumentos para uma DR, mas tenha aquela habilidade tão rara chamada empatia, que se coloque no lugar do outro, num esforço para manter a bolinha no ar como uma dupla jogando frescobol.

Procura-se alguém que por “jogo” imagine video-game com cerveja num domingo de chuva, e não ligar três dias depois para fingir que não está muito interessado. Alguém que não visualize a mensagem e responda só depois para dizer que estava ocupado demais. Mas que sim, de fato às vezes esqueça uma conversa porque estava mesmo ocupado, seja trabalhando, criando alguma arte ou viajando. E que assim vá, para que possa voltar com histórias, novidades e outros mundos. Para ir, porém, não é preciso ter diploma de faculdade nem ser fluente em inglês, mas se faz necessário ser expert em liberdade – não essa liberdade que necessariamente implica em poligamia ou relacionamentos abertos, e sim aquela que dá asas ao coração. Inclusive não é preciso ser fiel, visto que é livre, mas é imprescindível ser leal.

Tornam-se desnecessários presentes caros como joias ou perfumes, mas é fundamental voltar da praia com aquela tornozeleira de um real que você viu e achou minha cara. E é importante que se perca em meus cabelos vezes o suficiente para decorar o cheiro. É preciso ser manso o bastante para permitir que eu me aproxime e confie em fazer um cafuné, mas sem nunca confundir manso com domesticável, porque animal domesticado é animal submisso, e amor é bicho arisco, que corre solto e voa alto.

Não precisa ser belo, mas tem que ter aquele algo que faz com que eu te ache incrível, tipo a piscadinha na hora de dar tchau ou o jeito que segura meu rosto na hora de cumprimentar. Conta pontos também ter algum detalhe bobo, que só a gente entende, como o jeito que fecha um olho só no Sol ou a maneira como mexe nas mãos quando está nervoso. Não fará diferença se abrir ou não a porta do carro para mim, mas saiba que estarei sempre observando como trata os idosos, as crianças, sua mãe e se foi capaz de parar para ouvir de verdade quando aquele mendigo te chamou. Notarei se eleva a voz ou é grosseiro comigo, só para “mostrar quem manda”.

Poderia ser anúncio de classificado, com email para envio de correio elegante no final. Poderia ser anônimo, com letras recortadas de revista, o que daria um ar de suspense, sempre tão  relevante em matéria de amor, mas não é abertura de vaga nem aceitarei indicações. Ainda porque com hora marcada só é bom para atendimento em dentista. Deixa assim, deixa estar, uma hora a gente se encontra, sem saber que “dessa vez é”. Basta se manter tranquilo o bastante para escutar silêncios, pois é aí que vai acontecer… E o coração vai dizer.

 

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Carta ao pai do meu filho

 

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Não te escrevo há tanto que já cheguei a pensar que minhas cartas para você haviam completado seu ciclo, assim como “nossa história” — nem sempre bonita, mas ainda assim uma história. Nesse mundo em constante movimento, porém, a força das águas rodou o moinho do destino e iniciou outro ciclo, talvez o mais forte de nossas vidas, que é o motivo pelo qual uma nova rodada de cartas está surgindo: O ciclo da m(p)aternidade.

No exato momento em que eu e você viramos um uma revolução aconteceu e você foi elevado a um patamar especial na minha vida: O degrau super alto de “pai do meu filho”. Com amor e zelo eu gestei por cerca de 37 semanas a sua metade, ainda que com tantas dores e desconfortos, como você sabe bem. Após nove meses dessa minha construção nós parimos juntos, dando ao mundo uma mini pessoa cheia de vida, que brilha mais que aquelas algas luminosas. E esse menino espoleta, que cresce forte sob meus cuidados, é e sempre será sua metade, ainda que por vezes se pareça tanto comigo.

Talvez nosso filho mude bastante quando for um homem. Poderá ter cabelo curto ou comprido, ficar com barba ou não, variar entre diversos estilos e até fazer uma plástica, mas por mais que ele mude sempre terá o mesmo genótipo, que somos “nós”. E assim é com o interior, que será influenciado pelas pessoas que nosso pequeno conhecer, ambientes que frequentar e situações que viver, mas sempre terá em sua essência o pai e a mãe (as maiores referências dele), refletindo principalmente as marcas dessa primeira infância. Então o Vini precisa de você, não só para ensinar coisas que não serei capaz, como a atravessar na faixa ou falar baixo, mas principalmente e simplesmente “por você”.

E é por isso que, acima e apesar de tudo, te quero bem. Desejo do mais puro coração que todos os dias você encontre motivos para sorrir e viver, colorindo assim o mundo do Vini. Desejo-te também saúde, para que possa ficar bem velhinho e ter muito tempo para ensinar nosso menino a gostar de Beatles, tocar baixo e andar de skate. Além disso te desejo paixões, para que você tenha leveza o bastante para mostrar ao Vini que amor é ninho, não gaiola. Que ele olhe para nós e entenda que filho não significa casamento, porque se um sentimento precisa de algemas esse sentimento já está morto. E que assim o Vini possa ser livre para amar e desamar quantas vezes o pequeno coração dele quiser e permitir.

Às vezes vejo o Vini brincando entretido, sem perceber que está sendo observado, e noto muito de você. Não só pelo olhar, pelo queixo de bolinha ou pelas pernas arqueadas, mas pelo jeito, pela alma. Ele é meu parceirinho, você sabe, e nessas horas lembro de que você também já foi. Recordo de nossas parcerias em seminários da faculdade, chuva na barraca ou porres homéricos. Você confiava em mim e eu em ti. Como diz uma música que me lembra você, “nós fizemos história, pra ficar na memória”, então te peço, quase imploro, para que escreva esses novos capítulos com cuidado, caprichando na letra e se esforçando para não borrar. Conte comigo para escrever muitas páginas, mas assuma a redação se minha mão doer ou acabar a inspiração. Me procure se se perder e me resgate se eu me desorientar.

De tantas trilhas que já fizemos essa é sem dúvida a mais difícil, mas também a mais prazerosa. Então vamos juntos? Fazemos assim: Você me ajuda a passar pelas pedras e eu afasto os insetos. No fim haverá a paisagem mais bela de todas, que não é mar, cachoeira, nem mato: Haverá o sorriso do Vini, aquele sorriso que desmonta nossos mundos. Haverá nosso filho criado, pronto para abrir as asas e voar, seja contigo, comigo ou em horizontes distantes, seguro de que pode ir para onde quiser, sabendo que independente do que aconteça ele poderá sempre voltar com uma asinha quebrada para meu colo ou pro seu, na certeza de que não faltará amor.

Com afeto,
Da mãe do seu filho.

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Eletrocardiograma

Hoje foi uma manhã que rendeu: Lavei louça, dobrei roupa, guardei roupa, coloquei mais na máquina, varri a casa, cuidei dos cães, almocei, dei almoço pro meu filho e de quebra colhi flores e fiz um arranjo. Terminei tudo isso e fiquei incrédula, pensando que há alguns meses já cheguei a chorar de desespero por não conseguir sequer comer. Fiquei vendo meu bebê andar seguro de si pela casa, brincando com os cachorros e circulando pelos outros cômodos sem mim e rindo lembrei de quando eu tentava por ele no chão um pouco e ele engatinhava até os tacos soltos para comer aquela poeira nojenta do século quinze. Passou. Passado.

Estava Sol e isso sempre é suficiente para me deixar feliz, mas há uma semana chovia. Chorei. Já passou. Passado. Logo o tempo muda de novo. Vai passar. Como um exame cardíaco, com picos de altos e baixos –assim é a vida. E assim como o coração precisa dessa “constante inconstância” para se manter a vida também precisa. Foi necessário que houvesse chuva para que as flores do jardim desabrochassem sob o Sol. Foi preciso estrelas e noite sem Lua para que uma vida surgisse. Grandes referências se tornaram quase completos estranhos, amores viraram rima. Passou. Passado.

Tudo que hoje está não estará. Vai passar. Finitude, será que existe essa palavra? É minha preferida. Antes era lambida, mas já passou. Passado. Não serei mais eu, nem você você mesmo, o que talvez nos afaste — ou nos conecte. O hoje é só esse instante, porque o seguinte já é amanhã… E o que fica passou, já é passado. Que assim seja (e não seja).

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carta à mãe – a cura

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Onze anos. Foram longos e com frequência escuros anos. A gente sempre se deu tão bem, né? Eu tagarela, a senhora tão quieta, eu engraçadinha, a senhora séria… Acho que nos completávamos. E nessa já uma década de fato me senti como se faltasse uma parte de mim. Foi tão difícil, tão solitário, tão cruel, que tentei esquecer. Consegui. E depois doía mais ainda por não lembrar.

Mas aí… Aí eu voltei. Sua casa, seu quarto, seu tanque, seu quintal. Meu. Nosso. Sua vida, nossa história. Eu temia que fosse amargo, mas não: Do veneno veio o antídoto. Os cortes que fecham a ferida. Lembrei de quantas vezes dividimos um pastel na avenida, das tardes vendo desenho no sofá e do quanto me amou. Esses disse passei em frente à minha ex escola e lembrei de uma tarde chuvosa que a senhora apareceu na saída da escola, de surpresa, pra me levar um guarda chuva. Lembrei que eu te dei uma bronca e fiquei com vergonha, disse que aquilo era um mico, que eu já tinha quatorze anos haha. Me perdoa? Eu era uma adolescente idiota e hoje penso cinco vezes antes de descer a rua de casa, lembrando que o morro pra subir na volta não é fácil. E a senhora desceu, apenas para me proteger da chuva. Acho que era amor.

Eu tenho dois cachorros aqui no quintal. Dá um trabalho cuidar deles e manter tanto espaço limpo né? E a senhora, que nem gostava tanto de cachorro assim, preferindo suas codornas, me deixava ter um monte de cachorro e fazia o que era preciso. E fazia por mim, só pra me ver sorrir. Acho que era amor.

Hoje consegui fazer almoço como a senhora fazia pra conseguir cozinhar comigo: Dei um pote com comidinhas pro Vini fingir que tava cozinhando também. Ele ficou tão contente quanto eu ficava. Aqui sempre falta água, né? Sabia que eu pensava que a senhora enchia aquele barril de água só pra que eu e a Dani usássemos de piscina pras nossas bonecas? Haha

Os vizinhos, que não me viam há tempos, têm dito que “minha nossa, você ficou a cara da sua mãe”. Isso me enche de orgulho, porque a senhora, ainda que não esteja mais aqui para saber disso, sempre foi meu exemplo de beleza, caráter e justiça. E a cada manhã que acordo no meu, seu, nosso quarto, eu tento ser um pouco mais como ti. Só queria que soubesse que, como escreveu Galeano, a alegria soube ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória. Aqui fomos felizes, então essa casa é sagrada. Eu vou cuidar do nosso lar.

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Carta à morte

cranioOlá cara amiga, te pressinto nos dias que se prolongam e nos vazios das noites escuras. Fizeste longas viagens e devo confessar que não senti tua falta, mas te aceito e te recebo. Agradeço-te por tardar e permitir a eternidade em minhas memórias, baú repleto de cafés, ovo mexido com tomate, prantas e amor. Amor certamente nunca nos faltou. Não falta. Não faltará. Foram tantos momentos que partilhamos junto a sua querida irmã gêmea, a Vida, que não te temo mais. Peço-te apenas que venha bela, com flores rosadas na cabeça, que se despetalam cheias de serenidade e sabedoria — que não murcham nem morrem, apenas se desprendem da vida em uma brisa leve, flutuando com o vento para novos jardins. Que a chegada seja iluminada e acolhida pelos que aí a esperam. Te conheço desde cedo, cara amiga, e sei que não és fria nem cruel como te pintam. És injustiçada, bem sei, pois és passagem, continuação idêntica de sua irmã, numa espiral que nunca termina. Que a levem, que a tragam, e a levem outra vez, quantas vezes for preciso, girando e girando como uma bailarina bonita e feliz. Por isso te aceito e te recebo. Escolha como sempre a sua hora, pré agendada ou não, e venha. Mas te peço, novamente e infinita vezes: venha bela.

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O Natal não é para quem quer

charge-natal-excluidosDizem que devemos passar o Ano-Novo com pelo menos uma peça de roupa nova, para trazer sorte. Ouço essa história desde muito pequenininha e apesar de não ser a pessoa mais crente desse mundo sempre achei melhor não contrariar a crença, pensando que “bem, azar não vai dar”. Conforme o tempo foi passando eu fui percebendo, porém, que no grande jogo das festas de fim de ano há muito mais que sorte ou azar ou fraternidade e amor no coração: com 8 anos eu questionei meus pais sobre por que o urso de pelúcia que o Papai Noel me deu tinha etiqueta da marca Mattel, sendo que ele mesmo que confeccionava todos os presentes lá no Pólo Norte com seus duendes. Não me lembro bem da resposta, mas desde esse dia eu deixei de acreditar em Papai Noel e fui duramente apresentada a um ser muito mais vivo e presente em nossas vidas: o capitalismo cruel que triplica suas forças no fim do ano.

Claro que essa história é apenas mais uma sobre a “morte de minhas crenças infantis” e não representa nenhum grande trauma, ainda porque como uma boa criança de 8 anos eu esqueci de pensar no assunto após cinco segundos da minha pergunta, mas desde esse episódio o Natal e o Ano-Novo sempre me fazem refletir. E nesse ano, que foi tão introspectivo para mim, a reflexão é sobre nosso modo de levar a vida o impacto que isso provoca em outras vidas. Por isso, após concluir com pesar que não importa quão boas algumas crianças tenham sido o Papai Noel nunca vai levar presente para elas (será que ele fica com medo de parar debaixo do viaduto ali na Luz, por isso não entrega nada àquelas pobres Charge blogcrianças carentes?) e que, como diz Eduardo Galeano, por mais que determinadas pessoas (os ninguéns) comecem o ano mudando de vassoura a boa sorte não vem, eu decidi que as energia que enviarei ao mundo nesse dezembro serão diferentes.

Meu Natal será passado com apenas um pessoa, que é uma das mais importantes da minha vida, sem aquele falso espírito natalino de reunir a família e falar mal da prima para o avô enquanto ela vai ao banheiro e com gostosuras à mesa, mas em porções muito pequenas, sem nada de fartura porque há para quem falte. Já o Ano-Novo eu passarei com um vestido lindo de algodão que troquei em um bazar de peças usadas que uma amiga organizou. Nesse evento cada pessoa levava roupas que não queria mais e trocava com outras pessoas, por peças pelas quais se interessasse. Nem me lembro que peça minha a moça levou no lugar do vestido, mas para mim esse vestido simples, usado, é a representação de tudo que desejo para nós em 2014: desapego material, mais trocas de todos os tipos, interação com o próximo, menos compras e, principalmente, simplicidade. Boas festas

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À irmã que parte

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Todo inverno lembro de quando éramos bem pequenas e, durante as noites mais frias, juntávamos nossas camas de criança e dormíamos abraçadinhas, com um monte de cobertor em cima de nós. Nessa época eu não tinha alergia a pelo de coberta e o vão que ficava entre as camas parecia não existir. E então nos seus braços sumiam o vento, a noite e o medo da escuridão. Nosso quarto sempre foi nosso refúgio, nosso mundo secreto onde adulto era proibido de entrar em dia de festa do Dia das Irmãs. Ali a gente brincava, virava bicho, vampiro, aventureira, princesa e o que mais a imaginação permitisse.

Com o tempo as camas passaram a ficar sempre em seus devidos lugares: a minha perto da porta e a sua embaixo da janela, mas ainda assim eu despertava confusa no meio da noite com você chamando meu nome duas ou três vezes, até eu responder e você questionar: “já ta dormindo? To sem sono”. Aí começávamos a conversar, rindo baixinho pra não acordar os moradores do quarto ao lado até você dizer “me deu sono” e eu responder “ah, mas agora o meu passou”. E nesse ciclo provavelmente viramos muitas madrugadas.

Depois a vida adulta foi chegando e os vãos começaram a ser necessários e o despertador programado para 5h da manhã tornaram as conversas noturnas mais curtas do que gostaríamos, mas ainda assim nossas noites muitas vezes foram a melhor parte do meu dia. É estranho não ter que me preocupar em descer da minha cama sem pisar no seu joelho e não ir correndo para casa guardar minhas roupas correndo antes que você chegue e veja que estão todas em cima da sua cama. Faz falta sua vozinha de sono me dizendo “Tink?” toda vez que entro na pontinha do pé no quarto escuro e ainda assim você acorda. Dá medo ter pesadelo e ao acordar não ouvir você respirando baixinho ali do lado, o que sempre me fez pensar “ufa, tudo voltou ao normal”, mas é assim que se cresce, é assim que aquelas duas coisinhas vão virando gente. Aqui do meu lado anda sobrando espaço no quarto, no guarda-roupa e sobrando saudades dentro do coração, mas tudo que queria te dizer é “voa, porque lugar de passarinho é no ar, não no ninho”.

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Cartas de amor

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Nesse fim de semana, enquanto ia me apaixonando por Manuel Bandeira me deparei com um poema que me fez perceber que se minha casa pegasse fogo e só pudesse salvar uma coisa eu choraria pelos meus livros, pelos meus bichos de pelúcia e pelas fotos, mas seguramente escolheria levar minhas 3 caixas de sapato recheadas de cartas. Um mundo particular que guardo desde a infância: confidências com a melhor amiga, desejos de feliz aniversário da irmã mais velha, desenhos tremidos da caçula, carinhos da mãe, desabafos do pai, recados de bom dia escritos às pressas e juras de amor. Um relicário de lembranças, pessoas e momentos eternizados em uma folha de papel. Sentimentos que nunca poderiam ser expressos em e-mails ou redes sociais, feitos de letras trêmulas, tintas borradas por lágrimas e marcas de uma dobradura especial, tudo guardado para sempre ali. Se entregar uma carta é doar um pedacinho da alma a minha está completamente espalhada por aí, transformada em alegrias, comemorações, amizade, dores, ciúmes, festa e amor. Não sei delas: talvez estejam guardadas em gavetas, talvez picadas no lixo ou talvez ainda sejam capazes de fazer alguém sorrir, mas já não importa, cada carta um dia feita, letra a letra, já é uma pitada de amor — o tempero do mundo. E é por isso, simplesmente por isso, que eu poderia estar dizendo, poderia estar anunciando aos quatro ventos, mas fico por aqui, escrevendo com carinho mais uma singela carta de amor. Por fim, o poema inspirador: 

Cartas de Meu Avô

A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado…
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também

A paixão, medrosa dantes,
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme…
A dor… a visão da morte…
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu…
Do meu – fruto sem cuidado
Que inda verde apodreceu.

O meu semblante está enxuto.
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças…

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que, meu avô
Escrevia a minha avó.

(Manuel Bandeira)

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Amores de metrô

estacao-trianonDesde a primeira vez que o viu sentiu que seria eterno e verdadeiro. Já havia conhecido muitos homens, mas aquele definitivamente era especial. Ela o observava de canto de olho encostada na parede, enquanto ele lia distraído alguma coisa sobre… talvez música, não conseguiu esticar tanto o pescoço a ponto de se certificar. Não era belo e piscava o olho esquerdo de uma maneira esquisita enquanto avançava pelas páginas, mas o fazia com tanta paixão que ela desejou virar partitura. O moletom desleixado convidava a um abraço apertado, mas os braços cruzados talvez indicassem que queria distância. Hesitou por mais alguns segundos, ponderou, tentou ver seu reflexo no vidro, ajeitou a franja e mordeu o canto do lábio nervosamente enquanto buscava um lápis de olho jogado no fundo da bolsa e um rascunho qualquer para rabiscar seu telefone. 98523… tarde demais, a porta abriu e ele desceu apressado em meio a multidão, sem nunca saber que por 3 minutos foi o mais puro amor da vida de alguém.

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